Texto: Guilherme Henri
Em nota oficial, o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) recomendou na sexta-feira (14), o arquivamento do Projeto de Lei n.º 1.904/2024 que, trata sobre o prazo para abortos legais.
A recomendação foi enviada ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, pois segundo o Condege, o projeto é inconstitucional e infringe direitos humanos.
A decisão da Câmara dos Deputados em permitir que o projeto seja votado diretamente no Plenário, sem passar por comissões ou permitir discussões com a sociedade, gerou inúmeras críticas.
O presidente do Condege, Oleno Matos, defensor público-geral do Estado de Roraima, afirmou que “a criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas, rompendo com os valores democráticos preconizados pela Constituição de 1988 e pelos Tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, representando um flagrante retrocesso aos direitos conquistados por mulheres e meninas ao longo da história”.
MS
A coordenadora adjunta da Comissão da Mulher do Condege e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública de MS, defensora de 2ª Instância Zeliana Luzia Delarissa Sabala, destacou que, a Defensoria Pública é uma instituição dedicada à defesa dos direitos humanos de todas as pessoas.
“O PL 1904/2024 corporifica violação dos direitos humanos das mulheres garantidos em convenções e tratados internacionais, além da própria Constituição Federal e legislação penal, que asseguram uma vida livre e digna para todas as meninas e mulheres e excepcionam o crime de aborto quando a gestação é resultante de estupro, coloca a vida da gestante em risco ou se trata de feto anencéfalo”, pontua.
A coordenadora participou da construção da nota do Condege e durante o fim de semana também participou de uma manifestação organizada pela Marcha Mundial das Mulheres contra o PL. A manifestação, realizada na Avenida Afonso Pena, reuniu dezenas de pessoas da sociedade civil em protesto.
Coordenadora do Nudem, defensora de 2ª Instância Zeliana Sabala
A coordenadora do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente, da Defensoria de MS, defensora Débora Maria Paulino, pontuou as dificuldades na utilização do direito ao aborto legal.
Segundo a defensora, a demora na confirmação da gestação e na denúncia do crime, especialmente em casos que envolvem crianças, dificulta o acesso ao direito.
“A criança só se dá conta de que foi abusada quando a gravidez é descoberta. Em muitos casos o abusador é alguém próximo à família, como padrasto, tio ou primo, o que pode atrasar a descoberta da gravidez e dificultar a interrupção da gestação. Quando o caso chega à Defensoria, a criança ou adolescente já está com mais de 22 semanas; em outros casos, segundo relatos das famílias, não recebem a orientação correta sobre a possibilidade de interrupção”, pontua a coordenadora.
Ainda conforme a coordenadora, “sem o devido esclarecimento, a criança ou adolescente acaba sendo acompanhada pela rede de saúde como uma gestante comum”.
Coordenadora do Nudeca, defensora Debora Paulino
Confira a nota do Condege na íntegra:
NOTA TÉCNICA
Assunto: Da ilegalidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidade do
Projeto de Lei 1.904 de 2024, que modifica o Código Penal Brasileiro para,
dentre outras disposições, afastar a excludente de ilicitude prevista no artigo
128, II, nos casos de gravidez resultante de estupro em gestações acima de 22
semanas, equiparando o aborto nesses casos ao crime de homicídio simples.
O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais-
CONDEGE vem apresentar NOTA TÉCNICA sobre o assunto acima qualificado,
nos termos a seguir descritos.
- DO OBJETO DA PRESENTE NOTA TÉCNICA
O Projeto de Lei n.º 1.904/2024, de lavra do Deputado Federal Sóstenes
Cavalcante (PL/RJ) e assinado por outros 32 parlamentares1, pretende acrescer
dois parágrafos ao artigo 124, um parágrafo único ao artigo 125, um segundo
parágrafo ao artigo 126 e um parágrafo único ao artigo 128, todos do Código
Penal Brasileiro, e dá outras providências. Em resumo, o Projeto equipara o
aborto de gestação acima de 22 semanas - quando se presumiria a viabilidade
fetal - ao crime de homicídio, previsto no artigo 121, do Código Penal.
O texto do PL está assim disposto:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Esta Lei altera o Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, a fim de acrescer
dois parágrafos ao artigo 124, um parágrafo único
ao artigo 125, acrescer um segundo parágrafo ao
1 Evair Vieira de Melo - PP/ES; Delegado Paulo Bilynskyj - PL/SP; Gilvan da Federal - PL/ES;
Filipe Martins - PL/TO; Dr. Luiz Ovando - PP/MS; Bibo Nunes - PL/RS; Mario Frias - PL/SP;
Delegado Palumbo - MDB/SP; Ely Santos - REPUBLIC/SP; Simone Marquetto - MDB/SP; Cristiane
Lopes - UNIÃO/RO; Renilce Nicodemos - MDB/PA; Abilio Brunini - PL/MT; Franciane Bayer -
REPUBLIC/RS; Carla Zambelli - PL/SP; Dr. Frederico - PRD/MG; Greyce Elias - AVANTE/MG;
Delegado Ramagem - PL/RJ; Bia Kicis - PL/DF; Dayany Bittencourt - UNIÃO/CE; Lêda Borges -
PSDB/GO; Junio Amaral - PL/MG; Coronel Fernanda - PL/MT; Pastor Eurico - PL/PE; Capitão
Alden - PL/BA; Cezinha de Madureira - PSD/SP; Eduardo Bolsonaro - PL/SP; Pezenti - MDB/SC;
Julia Zanatta - PL/SC; Nikolas Ferreira - PL/MG; Eli Borges - PL/TO; Fred Linhares -
REPUBLIC/DF
artigo 126, e acrescentar um parágrafo único ao
artigo 128 do mesmo diploma legal.
Art.2º O art.124 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de
dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar
acrescido dos seguintes parágrafos:
"Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir
que outrem lho
provoque: ..........................................................................................
.”
“§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em
gestações acima de 22 semanas, as penas serão
aplicadas conforme o delito de homicídio simples
previsto no art. 121 deste Código”.
“§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o
exigirem as circunstâncias individuais de cada caso,
ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as
consequências da infração atingirem o próprio
agente de forma tão grave que a sanção penal se
torne desnecessária.”
Art. 3º O art.125 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de
dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar
acrescido do seguinte parágrafo único:
"Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da
gestante:
........................................................................................”
Parágrafo único. Quando houver viabilidade fetal,
presumida gestações acima de 22 semanas, as penas
serão aplicadas conforme o delito de homicídio
simples previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 4º Renumere-se o parágrafo único do art.126 do
Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -
Código Penal, como parágrafo primeiro e acrescente-
se o seguinte parágrafo segundo:
"Art. 126 ..............................................................”.
“§ 1º …...................................................................”
“§ 2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em
gestações acima de 22 semanas, as penas serão
aplicadas conforme o delito de homicídio simples
previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 5º O art.128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar
acrescido do seguinte parágrafo único:
"Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por
médico: ...................................................................... ............”
“Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e
houver viabilidade fetal, presumida em gestações
acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de
punibilidade prevista neste artigo. ”
Art. 6º. Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação.”
A primeira alteração proposta é a inserção de um parágrafo aos artigos
124, 125 e 126, todos do Código Penal, com a seguinte redação: “Quando houver
viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão
aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste
Código.” Ao texto do atual artigo 128, que prevê uma excludente de punibilidade
ao profissional médico (“Não se pune o aborto praticado por médico”) o Projeto
pretende inserir parágrafo com a seguinte redação: “Se a gravidez resulta de
estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas,
não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.”
Na justificativa apresentada, o proponente destaca o histórico do
tratamento dado ao aborto no país ao longo dos anos, menciona normas
técnicas expedidas pelo Ministério da Saúde, inclusive já revogadas ou alteradas,
realizando interpretação desapartada da redação do próprio Código Penal e do
arcabouço legislativo nacional e internacional que rege a temática, e afirma que
a indefinição de limite legal de idade gestacional para a realização de
interrupção da gestação abriria precedente para a sua realização em qualquer
período, o que seria uma afronta ao princípio de preservação da vida. Menciona,
ainda, dois casos mais recentes, um do ano de 2020 e um do ano de 2022, nos
quais crianças, que contavam com menos de doze anos de idade, precisaram
recorrer aos serviços de saúde para realização de aborto decorrente de estupro
após 22 semanas de gestação, sem considerar, entretanto, as razões impostas
pela realidade fática destas meninas, que levaram o fato a chegar tão
tardiamente ao conhecimento do Estado.
Porém, restará demonstrada adiante a inconstitucionalidade,
inconvencionalidade, desproporcionalidade e o retrocesso que a aprovação de
tal projeto representa, pois a prática do aborto com a idade gestacional
avançada, especialmente nos casos que envolvem contexto de violência sexual,
somente existem em razão da desproteção estatal, da absoluta incapacidade
do Estado em acolher meninas e mulheres vítimas de estupro de forma
eficaz, efetiva e célere. A equiparação ao crime de homicídio, que torna a
punição da vítima superior a punição do algoz, é absolutamente
desproporcional, desumana, revitimizadora e violadora da dignidade humana.
Cumpre destacar, oportunamente, a fala de Débora Diniz, pesquisadora e
integrante do GT de Bioética da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco): “Diferente do passado recente, até uns 30 anos atrás, a gente poderia
estar discutindo convicções, questões relacionadas a uma ética privada das
pessoas. Hoje é um nicho de operação e movimentação de um ecossistema de ódio.
E aí se ignora o impacto de saúde pública, se ignora que estamos falando de
meninas e mulheres que sofrem violência.”
Ademais da inadequação quanto ao mérito da matéria, há que se
registrar, também, a inconstitucionalidade e ilegalidade da forma como o
regime de urgência foi votado na sessão de ontem na Câmara Federal, com
evidente violação ao processo legislativo que pressupõe o respeito aos
princípios da publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência.
A votação relâmpago que ora se impugna não registrou nem verbalmente,
nem no painel a matéria que estava sendo levada a votação, não foi devidamente
anunciada pelo presidente da Câmara de que se tratava o projeto de lei ao qual
estava sendo aplicado o regime de urgência, enfim, se a ideia era conseguir
aprovação sem a menor publicidade e discussão da matéria, o intento foi
alcançado.
- DA ANÁLISE JURÍDICA DA QUESTÃO POSTA
A) Das Diretrizes da Organização Mundial de Saúde e do impacto da
criminalização para crianças e adolescentes.
As atuais diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre
cuidados no aborto (2022)2 recomendam a descriminalização total do aborto e
desaconselham leis e outras regulamentações que restrinjam ou proíbam o aborto
com base, dentre outros, nos limites de idade gestacional.
O documento atual reafirma que o acesso ao aborto seguro é parte
crucial da assistência médica, reconhecendo também que a maioria das mortes e
complicações ocorrem em regiões mais empobrecidas do mundo.
Aponta que os limites gestacionais não têm base científica e estão ligados
ao aumento da mortalidade materna e a maus resultados de saúde. Este
documento afirma, dentre outros aspectos, que “embora os métodos de aborto
possam variar conforme a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida
com segurança independentemente da idade gestacional”.
2 World Health Organization (WHO). Abortion care guideline. Geneva: WHO, 2022. Disponível
em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/355465/9789240051447-
por.pdf?sequence=1. Acesso em 27 nov. 2023.
No mesmo sentido, o documento “Tendências na mortalidade materna
2000-2020”3, da Organização das Nações Unidas, ratifica que as mortes
maternas estão amplamente concentradas nas áreas mais pobres do mundo,
sendo o aborto inseguro uma das principais causas dessas mortes. Assim,
apesar do avanço científico atualmente disponível, houve grande retrocesso no
cuidado materno e efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
No âmbito regional americano, Informe produzido pela Organização dos
Estados Americanos (OEA) e pelo Mecanismo de Seguimiento de la Convención de
Belém do Pará (MESECVI) estima que meninas menores de 16 anos correm risco
de morte materna quatro vezes maior que o das mulheres entre 20 e 30 anos. O
documento enfatiza, ainda, que a gravidez forçada perpetua a violência
sexual sofrida e expõe a criança ou a adolescente a novas e reiteradas
formas de violência e violação de seus direitos humanos, vulnerabilizando
sua integridade pessoal, sua condição de criança ou adolescente e suas
possibilidades de futuro.4
No Brasil, estima-se que o aborto seja a quarta causa de mortalidade
materna,5 de modo que as restrições impostas ao exercício do direito ao aborto
legal contribuem para a realização de abortos inseguros, o que coloca em risco a
vida e a saúde de mulheres e meninas.
Apesar de ser um direito garantido expressamente no Código Penal
desde 1940, nos casos de gravidez com risco para gestante e gravidez
decorrente de violência sexual, e desde 2012, no caso de fetos anencéfalos, após
decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54, o acesso ao
aborto no Brasil ainda é burocrático, extremamente desgastante e violento
para as mulheres, meninas e pessoas que gestam. Tal realidade se mostra ainda
mais preocupante quando estamos diante de pessoas que engravidam em
decorrência de estupro e se encontram em situação de acentuada
vulnerabilidade social.
Segundo o artigo “Como a normatização sobre o serviço de aborto em
gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios?”6, “mesmo mais
3 “Tendências na mortalidade materna 2000-2020”. Disponível em:
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/tendencias-na-mortalidade-materna-
2000-
2020/#:~:text=As%20mulheres%20em%20pa%C3%ADses%20de,em%20pa%C3%ADses%20de%20bai
xa%20renda. Acesso em 13 jun. 2024.
4 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Informe hemisferico sobre violencia sexual y
embarazo infantil en los Estados Parte de la Convención de Belém do Pará. MESECVI, 2016.
5 CÁSSIA, Sávia; SOUSA, Heloísa de. Aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil. Brasil
de Fato, Entrevista, Direitos Humanos. 31 jul. 2018. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2018/07/31/aborto-e-a-quarta-causa-de-morte-materna-no-
brasil-afirma-pesquisadora. Acesso em: 30 nov. 2023.
6 “Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua
oferta nos municípios?”. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/csc/a/wJpc4KshhqK3mn59jTLHrQN/#:~:text=A%20oferta%20do%20aborto%
20em,capacidade%20instalada%20nos%20munic%C3%ADpios%20pa%C3%ADs. Acesso em 13 jun.
- de 20 anos após a primeira normatização da oferta pelo Sistema Único de Saúde
de aborto em gestações decorrentes de estupro, são apenas 55 municípios (de
um total 5570 existentes) com Serviços de Referência para Interrupção de
Gravidez em Casos Previstos em Lei cadastrados e com capacidade instalada
de realizar o aborto nessas situações. Nesses 55 municípios viviam mais de 1⁄4
da população do sexo feminino em idade fértil do país, indicando a concentração
do serviço em municípios de maior porte populacional. Quatro Unidades da
Federação não apresentaram qualquer estabelecimento no cenário.”
Nos casos de abortos em gestações avançadas, notadamente acima de 22
semanas, a situação se torna ainda mais dramática, eis que apenas 3 serviços
prestam esse atendimento atualmente no Brasil.
Assim, a oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro é
extremamente limitada no Brasil, restrita a poucos estabelecimentos e
concentrada em grandes centros urbanos. A imposição de barreiras
geográficas em razão do reduzidíssimo número de serviços, aliada à
dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças, ao
desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, à descoberta de
diagnósticos de malformações que geralmente são realizados após a
primeira metade da gravidez7, bem como à imposição de barreiras pelo
próprio sistema de saúde (objeção de consciência, exigência de boletim de
ocorrência ou autorização judicial, dentre outros) constituem as
principais razões para a procura pelo aborto após a 20ª semana de
gravidez.
Além disso, desigualdades relacionadas à renda, educação, informação,
raça ou etnia e territorialidade aumentam ainda mais os riscos para
mulheres e meninas grávidas.
A pesquisa desenvolvida no âmbito do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), junto ao Grupo Curumim - Gestão e
Parto e Ipas Brasil, intitulada “BARREIRAS DE ACESSO AO ABORTO LEGAL NA
BAHIA NO PERÍODO DA PANDEMIA DA COVID-19: 2020 E 2021”8 ratifica as
principais dificuldades enfrentadas pelas meninas, mulheres e pessoas com
capacidade de gestar para acessar o direito ao aborto:
a) falta de informação e pouca visibilidade externa dos serviços, inclusive
internamente nas próprias unidades;
b) deficiência da estrutura física dos hospitais, que não contam com
áreas específicas para mulheres em situação de abortamento, obrigando-
as ao compartilhamento do mesmo espaço com parturientes e seus
recém-nascidos, o que representa uma falha no acolhimento adequado;
7 Questão de saúde – Mais da metade das gestações incompatíveis com a vida chegam à DPE/BA
com pelo menos 20 semanas
8 BARREIRAS DE ACESSO AO ABORTO LEGAL NA BAHIA NO PERÍODO DA PANDEMIA DA COVID-19:
2020 E 2021. Disponível em: http://www.isc.ufba.br/wp-content/uploads/2023/04/Barreiras-de-
acesso-ao-aborto-legal-na-Bahia-RESUMO-EXECUTIVO.pdf. Acesso em jun. 2024.
c) predominância da curetagem como principal método de esvaziamento
uterino, em detrimento da Aspiração Manual intrauterina (AMIU) e o
aborto farmacológico, ambos métodos recomendados pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), por serem mais seguros;
d) estabelecimento de limites de tempo gestacional para realização da
interrupção a despeito da inexistência de previsão legal neste sentido e
da recomendação da OMS de se eliminar o prazo gestacional com vistas
a garantir o acesso para meninas, mulheres e pessoas que gestam e estão
no segundo trimestre de gestação, bem como aquelas que residem em
áreas remotas;
e) persistência de atitudes de recusas de atendimento por parte dos
profissionais de saúde e objeção de consciência por médicos,
fundamentadas em valores éticos, religiosos, sobretudo em casos de
gravidez pós estupro, diante da desconfiança na palavra das vítimas.
Tais recusas demonstram despreparo, formação insuficiente, falta de
sensibilização e capacitação sobre a atenção ao aborto, causando
desnecessário sofrimento às pacientes, em um momento de extrema
fragilidade emocional.
Destaca-se também que segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança
Pública9, o ano de 2022 alcançou o maior número de registros de estupro e
estupro de vulnerável da história, com 74.940 vítimas. A imensa maioria das
vítimas (61,4%) tinha no máximo 13 anos, sendo que 8 em cada 10 vítimas de
violência sexual eram menores de idade. 56,8% delas eram pretas ou pardas.
A situação é ainda mais dramática se considerarmos a subnotificação desse tipo
de crime: conforme estudo publicado em março de 2023 pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a subnotificação de casos de estupro seria
da ordem de 91,5%, podendo-se estimar que ocorram no Brasil 822 mil
estupros por ano, o que equivale a dois por minuto. Mais da metade dessas
violências ocorre durante a vida reprodutiva das mulheres - boa parte delas
meninas e adolescentes, cujos aparelhos reprodutivos ainda estão em
desenvolvimento.
Levantamento recente elaborado pela Rede Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Reprodutivos (RFS), utilizando dados dos Sistema de Informação
sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade
(SIM), ambos do DataSUS, identificou que 252.786 meninas foram mães num
período de dez anos no Brasil (2010-2019). De acordo com a pesquisa, uma
criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil, mais de 70 partos são realizados em
meninas por dia e cerca de 20 mil meninas engravidam em decorrência de
estupro por ano10.
9 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/. Acesso em jun.
- 10 UMA CRIANÇA É MÃE A CADA 20 MINUTOS NO BRASIL. Reportagem de Daniela Valenga.
Catarinas, 12 de outubro de 2021. Disponível em https://catarinas.info/uma-crianca-e-mae-a-
cada-20-minutos-no-brasil/ Acesso em 05/12/2023.
Além das consequências a médio e longo prazo na vida dessas
crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento, sujeitas – ainda que em
teoria – à proteção integral do Estado, a pesquisa da RFS demonstrou que a
gestação nos corpos de crianças e adolescentes representa risco às suas
vidas.
O relatório da pesquisa demonstrou que, em todos os indicadores
de saúde aferidos, os piores dados correspondiam às gestações nos corpos das
meninas quando comparados com as gestações nas demais faixas etárias: i. a
razão de mortalidade materna para as meninas mães foi de 62,57 por 100 mil
nascidos vivos, em comparação aos 57,27 na média de todas as faixas etárias; ii.
os óbitos fetais representaram uma taxa de 13,64 natimortos por mil nascidos
vivos, enquanto a taxa geral foi de 10,72; iii. maior prematuridade fetal na razão
de 16,8% comparada com 13,2%, em outras faixas etárias; iv. elevadas taxas de
cesarianas na razão de 38% das meninas mães, quando comparada à
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de cerca de 15% de
cesarianas; v. baixo peso dos fetos com coeficiente de 13%, comparado com
9,65% nas demais faixas etárias.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(FEBRASGO) emitiu nota informativa, em junho de 2022, por meio da qual
também conclui que:
Os limites estabelecidos em manuais ou normas técnicas do
Ministério da Saúde são infralegais e devem ser superados a
partir das evidências científicas e recomendações das
sociedades da especialidade. A FEBRASGO, em seus
documentos técnicos, como o Protocolo nº 69 “Interrupções da
gravidez com fundamento e amparo legais”, a exemplo das
diretrizes da FIGO e a Organização Mundial da Saúde, não
limita a assistência a meninas e mulheres em situação de
aborto legal à idade gestacional. Há, inclusive, orientações
sobre a dose do tratamento adequado para o aborto induzido
em idades gestacionais mais avançadas;11
Destaque-se que a referida nota reforça o alerta para o fato de que
crianças e adolescentes apresentam riscos mais elevados de complicações
obstétricas durante a gravidez em razão da condição de imaturidade biológica
(tais como anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional, parto
prematuro e partos distócicos), citando estudos que atestam que as taxas de
mortalidade entre gestantes menores de 14 anos podem ser até 5 vezes maiores
do que a de mulheres adultas entre 20-24 anos.
Na verdade, o que se extrai das evidências científicas é que, mesmo nas
idades gestacionais mais avançadas, a realização do aborto será mais segura que
a realização do parto, consoante ensinam os médicos Helena Paro e Cristião
11 FEBRASGO. Nota informativa aos tocoginecologistas brasileiros sobre o aborto legal na
gestação decorrente de estupro de vulnerável. Disponível em:
https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1470-nota-informativa-aos-tocoginecologistas-
brasileiros-sobre-o-aborto-legal-na-gestacao-decorrente-de-estupro-de-vulneravel. Acesso em:
27 nov. 2023.
Rosas em obra referenciada pela pesquisadora e promotora de justiça Mirella
Monteiro:
Apesar dos riscos relacionados ao aborto aumentarem com a
idade gestacional, o risco de morte entre abortos acima de 21
semanas de gravidez é bastante incomum (8,9 óbitos a cada
- 000 procedimentos) e representa ¼ do risco de óbito
relacionado à gravidez no termo (BARTLETT et al., 2004;
HARRIS; GROSSMAN, 2011). Ou seja, o aborto, mesmo nas
idades gestacionais mais avançadas, é marcadamente mais
seguro que o parto12.
Assim, a criminalização pretendida é particularmente grave porque afeta
especialmente as meninas e mulheres mais vulneráveis, principalmente social e
economicamente. Meninas vítimas de violência sexual são as que demoram mais
a identificar e conseguir pedir socorro em situações de violência, a perceber
uma gravidez decorrente de violência e a chegar aos serviços de saúde. É a elas-
principalmente- que será vedado o exercício do direito previsto em lei com a
proibição do procedimento, com consequências graves à sua saúde e à sua vida.
Muito pouco se avançou em relação ao debate do aborto no Brasil,
sendo que PL sub examine visa retroceder, ignorando a conjuntura brasileira e
as vidas que serão verdadeiramente impactadas.
B) Das Violações ao Sistema Internacional de Direitos Humanos
O Brasil é signatário do mais importante tratado internacional de
promoção dos direitos das mulheres, a Convenção das Nações Unidas para
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW),
13de 1979.
O documento traz diretrizes para que os Estados-parte promovam a
igualdade entre homens e mulheres e eliminem todas as formas de
discriminação contra as mulheres em suas legislações, serviços e políticas
públicas, inclusive na esfera dos cuidados médicos e do acesso à saúde (art. 12).
Nesse aspecto, a CEDAW determina aos Estados-parte que forneçam às
mulheres serviços apropriados relacionados à gravidez, parto e período pós-
natal, assim como nutrição adequada durante a gravidez e o aleitamento.
Especificando ainda mais as obrigações dos Estados no que tange à
saúde das mulheres, a Recomendação n. 24 do Comitê CEDAW aponta que deve
12 MONTEIRO, Mirella de Carvalho Bauzys. A política pública de garantia do direito ao aborto legal
em gravidez decorrente de estupro: a inapropriada limitação da idade gestacional e a atuação do
Ministério Público. In: MARCON, Chimelly Louise de Resenes (Org). A defesa dos direitos humanos
das mulheres na visão de mulheres do Ministério Público: volume II. João Pessoa, PB: Editora Porta,
2023, p. 633.
13 DECRETO Nº 1.973, DE 1º DE AGOSTO DE 1996 - Promulga a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho
de 1994. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm#:~:text=DECRETA%3A,inteirament
e%20como%20nela%20se%20cont%C3%A9m. Acesso em jun. 2024.
ser assegurado às mulheres nos serviços de saúde treinamento sensível ao
gênero, acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva e respeito
aos seus direitos humanos, incluindo autonomia, privacidade, confidencialidade,
consentimento informado e escolha. De acordo com a recomendação, o
desrespeito à confidencialidade pode dissuadir as mulheres de procurarem
aconselhamento e tratamento, o que pode afetar negativamente a sua saúde e
bem-estar, principalmente em casos relacionados a doenças do trato genital,
contracepção, aborto e violência sexual.
A Recomendação nº 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) trata a gravidez forçada, a
criminalização do aborto e a negação ou o atraso no aborto seguro e de
cuidados pós-aborto como formas de violência de gênero e de violações à
saúde sexual e reprodutiva das mulheres, equiparando-as à tortura.14
Não se olvide, ainda, que muito recentemente, em 03 de junho de 2024, o
Comitê CEDAW das Nações Unidas - que monitora o cumprimento das
obrigações decorrentes da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher - recomendou ao Brasil a descriminalização
do aborto em todos os casos, garantindo a mulheres e meninas o acesso ao
aborto seguro e aos serviços de pós-abortamento, a fim de assegurar a plena
realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia de fazer escolhas
livres sobre seus direitos sexuais e reprodutivos15.
O Projeto viola, ainda, outros Tratados de Direitos Humanos
incorporados pelo Estado Brasileiro, dentre os quais, destaca-se: o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos16 e a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará)17.
No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Convenção de Belém
do Pará define o que se entende por violência contra a mulher em seus artigos 1
e 2:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência
contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero,
que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada.
14 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação Geral nº 35 sobre violência de gênero
contra as mulheres do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (CEDAW). Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Brasília, 2019.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf. Acesso em: 05 dez.
- 15 Dispopivel em https://www.gov.br/mulheres/pt-
br/TraduonooficialdaversopreliminarnoeditadadasobservaesfinaisdoComitCEDAW.pdf. Acesso em 13 de junho
de 2024.
16 Promulgado pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992.
17 Promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 01 de agosto de 1996.
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência
física, sexual e psicológica. a) ocorrida no âmbito da família ou
unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o
agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua
residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-
tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e comedida
por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro,
abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada,
sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em
instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro
local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes,
onde quer que ocorra.
Da análise da referida Convenção, convém ressaltar a previsão no que
tange à violência tolerada pelo Estado (violência institucional), sobretudo
aquela decorrente do mau funcionamento do sistema de saúde pública em razão
de suas omissões estruturais. Dessa dimensão, é possível concluir que a inação
do Poder Público, manifestada, por exemplo, pelo descumprimento sistemático
da lei que garante a interrupção da gestação em caso de estupro, configura
grave violação de direitos humanos das mulheres.
Frise-se ainda, que, em situação análoga, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos aplicou a Convenção de Belém do Pará condenando a Bolívia
no caso Senhora I.V. vs. Bolívia, em 2016, estabelecendo importante precedente
que também passa a ser violado pelo Projeto de Lei 1904/2004:
- A Corte reconhece que a liberdade e a autonomia das
mulheres em matéria de saúde sexual e reprodutiva tem
sido historicamente limitada, restringida ou anulada com
base em estereótipos de gênero negativos e
prejudiciais(...). Isso se deve a que social e culturalmente
os homens tenham assumido um papel preponderante na
adoção de decisões sobre o corpo das mulheres e que as
mulheres são vistas como o ser reprodutivo por
excelência. (...)
- (...) A Corte reconheceu que determinados grupos de
mulheres sofrem discriminação ao longo da sua vida com
base em mais de um fator combinado com o seu gênero, o
qual aumenta o risco de sofrer atos de violência e outras
violações dos seus direitos humanos (...)
- A Convenção de Belém do Pará estabeleceu
parâmetros para identificar quando um ato constitui
violência e define no seu artigo 1° que “deve-se entender
por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta,
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
público como no privado”. Da mesma forma, a Corte
afirmou que a violência baseada no sexo, “abrange atos
que infringem danos ou sofrimentos de caráter física,
mental ou sexual, ameaças de cometer esses atos, coação
e outras formas de privação da liberdade. (...)
- (...) a comunidade internacional foi reconhecendo de
forma progressiva que a tortura e outros tratamentos
inumanos também podem acontecer em outros contextos
de custódia, domínio ou controle nos quais a vítima está
indefesa, tais como no âmbito dos serviços de saúde e
especificamente da saúde reprodutiva. Nessa linha, a
Corte destaca o papel transcendental que ocupa a
discriminação ao analisar a adequação das violações dos
direitos humanos das mulheres à figura da tortura e os
maus tratos desde uma perspectiva de gênero.18
Por fim, destaca-se o caso submetido ao Comitê dos Direitos da Criança
das Nações Unidas em 2020 e julgado em maio de 2023, conhecido como
“Camila vs. Peru”. Na ocasião, o Comitê reconheceu a responsabilidade do
Estado peruano em situação na qual uma adolescente de 13 anos foi submetida
à gestação forçada após violência sexual, ignorando-se todos os riscos à saúde
física e mental decorrentes da manutenção da gravidez indesejada.
Extrai-se do documento:
- 5 El Comité considera que, en el caso de niñas
embarazadas, debe valorarse la afectación especial y
diferenciada de la salud física y mental que supone el
embarazo en la niñez, así como el riesgo particularmente
importante para la vida de las niñas —derivado de
posibles complicaciones en el embarazo y el parto— y la
afectación potencialmente grave en su desarrollo y
proyecto de vida. Dicha afectación de la salud y vida
vendrá determinada en función de la edad y madurez
física y psicológica de la niña gestante, su sistema de
apoyo familiar y comunitario, así como de otros factores
que puedan repercutir en su salud mental, incluidos el
hecho de ser víctima de violación sexual, incesto, o
factores de vulnerabilidad socioeconómicos y culturales
[...].
- 7 Teniendo en consideración los hechos descritos
anteriormente y, en particular, el riesgo que el embarazo
conllevaba para la vida y la salud de la autora, por razón
de su edad (13 años al momento de los hechos), el Comité
considera que tanto el hecho de no haber facilitado a la
autora información sobre los servicios de interrupción
voluntaria del embarazo como no haberle proporcionado
el acceso efectivo a dichos servicios la expusieron a un
18 OEA. Corte IDH. Sentença. Caso I.V. vs. Bolívia. 30 de novembro 2016. p. 81-83. Disponível em
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_329_esp.pdf>. Acesso em 21 maio
- riesgo real, personal y previsible de mortalidad, que la
forzó a llevar el embarazo a término, con riesgos claros y
previsibles para su vida, desarrollo y salud, y que
desencadenó una emergencia obstétrica. A ello se sumó
su condición de víctima de violación sexual por parte de
su padre, lo cual agravó aún más las consecuencias del
embarazo sobre su salud mental. El Comité concluye que
los hechos descritos revelan una violación de los derechos
de la autora reconocidos en los artículos 6 y 24 de la
Convención. Asimismo, la falta de consideración a las
reiteradas solicitudes de la autora de poner término al
embarazo violó su derecho a que se tuviera debidamente
en cuenta su opinión en un asunto que la afectaba tan
directamente, como es el embarazo, en violación del
artículo 12, párrafo 1, de la Convención, leído
conjuntamente con los artículos 6 y 24.
- 8 El Comité toma nota de la afirmación de la autora
sobre las afectaciones que la violencia sexual, el embarazo
forzado y la judicialización del aborto espontáneo
tuvieron sobre su salud mental, como fue reflejado en los
episodios de llanto descontrolado e ideas suicidas
durante sus visitas prenatales. A pesar de ello, y del
diagnóstico de depresión infantil y estrés postraumático,
la autora no recibió atención psicológica adecuada y las
sesiones de psicoterapia, que tuvieron lugar solamente
tras el aborto espontáneo, fueron interrumpidas tras tres
sesiones, a pesar de que la autora requería tratamiento
continuado.
[...].
- Como consecuencia, el Estado parte debe otorgar una
reparación efectiva a la autora por las violaciones sufridas,
que incluya una indemnización adecuada por el daño
sufrido y un apoyo para recomponer su vida, entre otros
aspectos para proseguir sus estudios. Asimismo, el Estado
parte debe facilitar a la autora el acceso a servicios de
salud mental. Finalmente, el Estado parte tiene la
obligación de evitar que se cometan violaciones similares
en el futuro. En este sentido, el Estado parte debe: a)
despenalizar el aborto en todos los supuestos de
embarazo infantil; b) asegurar el acceso a servicios de
aborto seguro y cuidados postaborto para las niñas
gestantes, en particular en los casos de riesgo a la
vida y salud de la madre, violación o incesto; c)
modificar la normativa reguladora del acceso al
aborto terapéutico (Guía Técnica) para prever su
aplicación específica en las niñas y asegurar, en
particular, la debida consideración al especial riesgo
para la salud y la vida que entraña el embarazo
infantil; d) establecer un recurso claro y expedito en
caso de incumplimiento del procedimiento de la Guía
Técnica relativo al acceso a la interrupción voluntaria
del embarazo, y asegurar la rendición de cuentas por
dicho incumplimiento; e) dar instrucciones claras y
brindar capacitación al personal de salud y judicial,
incluida la Fiscalía, en los derechos amparados por la
Convención y sobre la aplicación e interpretación de
la legislación relativa al aborto terapéutico; f)
proporcionar una educación adecuada en materia de
salud sexual y reproductiva, y accesible a todos los
niños y niñas; g) asegurar la disponibilidad y el
acceso efectivo de los niños y las niñas a la
información y los servicios de salud sexual y
reproductiva, incluida la información y acceso a
métodos anticonceptivos, y h) establecer un
mecanismo intersectorial para evitar la
retraumatización del niño o niña víctima de abuso
sexual infantil y asegurar intervenciones terapéuticas
rápidas y apropiadas.
Com efeito, é evidente que a aprovação do projeto de lei em questão, na
medida em que dificulta o acesso de mulheres e, principalmente, de meninas à
interrupção legal da gestação, pode levar à responsabilização internacional do
Brasil, por descumprimento das obrigações assumidas perante a comunidade
internacional.
C) Das Violações aos Princípios Constitucionais da dignidade da
pessoa Humana, da vedação à tortura ou ao tratamento desumano ou
degradante, da razoabilidade e da vedação ao retrocesso
Como já exaustivamente mencionado, a violência sexual causa nas
mulheres e meninas abalo psicológico considerável e dano à saúde mental, de
modo que exigir que uma mulher gere filho/a fruto da violência sexual,
desconsiderando a sua autonomia, é conduta atentatória à dignidade humana,
sendo a manutenção de uma gravidez forçada nessa hipótese prática
assemelhada à tortura ou ao tratamento desumano ou degradante, além de
afronta ao direito de planejamento familiar (art. 5º, caput, e incisos I, III; art. 226,
§ 7º, todos da Constituição Federal).
Além disso, ao igualar ao homicídio simples o aborto praticado após a
22ª semana de gestação, a pena a ser aplicada será a de reclusão de 06 a 20 anos,
conforme o art. 121 do Código Penal.
O atual Código Penal tipifica o crime de aborto em seus artigos 124 a 128,
estabelecendo penas que variam entre 1 a 3 anos, para a mulher que provoca
um aborto em si mesma ou permite que outra pessoa realize o procedimento.
Quando não há consentimento da gestante, a pena varia de 3 a 10 anos. Já com o
consentimento da gestante, a pena varia de 1 a 4 anos. Para os casos em que a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave, a pena é duplicada, se, por
qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Ocorre que, com a alteração desses artigos, que equipara o crime de
aborto ao crime de homicídio simples, a pena passará a ser de 06 a 20 anos.
Assim, o aborto sai de uma pena de 1 a 3 anos ou de 1 a 4 anos para uma pena
de 06 a 20 anos de reclusão.
As vítimas de estupro, dessa forma, estarão sujeitas a sofrer sanções
mais severas do que a aplicada para o estuprador, já que a pena para o
crime de estupro é de 6 a 10 anos, restando evidente a violação ao princípio da
proporcionalidade/razoabilidade.
Há evidente desproporção também em relação à pena cominada ao crime
de infanticídio (artigo 123, CP - pena de 02 a 06 anos). Ora, sob o ponto de vista
do bem jurídico, o aborto consentido não pode ter pena superior àquela
cominada para o infanticídio, em que a vítima nasceu com vida.
Para exemplificar ainda mais a ausência de proporcionalidade entre a
modificação legislativa que se pretende e todo o sistema jurídico penal já
existente é de se registrar que ao agressor que provoca lesões corporais que
resultam em aborto a pena varia de 02 a 08 anos( artigo 129, §2º, V, CP).
Tais constatações evidenciam a absoluta desproporcionalidade e falta de
razoabilidade da proposição legislativa em questão, além de perversas
misoginia e racismo.
Corroborando este entendimento, vale destacar o Caso Manuela vs. El
Salvador19, julgado no ano de 2021 pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos20, determinado que El Salvador corrigisse a pena aplicada e que,
enquanto isso não ocorresse, os juízes realizassem o controle de
convencionalidade e se recusassem a aplicar leis inconvencionais. Tal
contexto assemelha-se ao conteúdo do Projeto de Lei em comento, visto que
pretende aplicar pena desproporcional ao crime de aborto, o que o torna,
para além de destoante da realidade vivenciada por centenas de meninas,
mulheres e pessoas que gestam no país, inconstitucional e inconvencional,
conforme esmiuçadamete aduzido adiante.
Cabe mencionar também a severa violação ao Princípio da Vedação ao
Retrocesso Social, que já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
19 Uma mulher de 33 anos que teve sua vida interrompida pela criminalização do aborto. Em 2008,
Manuela vivia na zona rural de El Salvador com dois filhos pequenos, quando, no terceiro trimestre
de sua terceira gravidez, sofreu uma emergência obstétrica que resultou em uma hemorragia severa e
desmaio. Levada para um hospital, a equipe de saúde a tratou como se tivesse provocado um aborto,
e a polícia foi acionada. O resultado foi um processo penal que a condenou a 30 anos de prisão por
homicídio agravado, uma manobra jurídica perversa para enquadrar em crime mais grave a
culpabilização de Manuela por uma fatalidade de saúde.
20 Sentença do Caso Manuela e outros Vs. El Salvador. El Salvador é responsável pela prisão,
condenação e morte de uma mulher que sofreu uma emergência obstétrica. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/comunicados_prensa.cfm?lang=pt&n=1775
em algumas oportunidades, tendo como referência o julgamento do ARE
- 337, relatado pelo ministro Celso de Mello, cuja ementa se transcreve de
forma parcial:
"o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de
direitos fundamentais de caráter social, que sejam
desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão
ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que
veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações
positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à
saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no
processo de efetivação desses direitos fundamentais
individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de
concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos,
venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo
Estado. (…). Em consequência desse princípio, o Estado,
após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o
dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga,
sob pena de transgressão ao texto constitucional, a
preservá-los, abstendo-se de frustrar — mediante
supressão total ou parcial – os direitos sociais já
concretizados."
Sendo assim, em consequência desse princípio, o Estado, após
reconhecer direitos, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também,
se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los,
abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos
sociais já concretizados.
Neste ponto, cumpre mencionar, o Caso Beatriz e outros vs. El Salvador21,
apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O caso
Beatriz em relação a El Salvador, refere-se à proibição absoluta da interrupção
voluntária da gravidez e à responsabilidade internacional do Estado pelas
violações dos direitos de Beatriz e sua família devido à proibição absoluta da
interrupção voluntária da gravidez, que a impediu de ter acesso a uma
interrupção legal e em tempo oportuno e a deixou em uma situação de grave
risco à vida, à saúde e à integridade física, e levou à inviabilidade da vida
extrauterina do feto. Em seu relatório de mérito22, a CIDH considerou, entre
outros aspectos, que os danos e riscos aos direitos à vida, à saúde, à integridade
física e à privacidade de Beatriz como consequência da falta de acesso à
21 Em 2013 Beatriz, uma mulher jovem que vivia em situação de extrema pobreza, foi diagnosticada
com uma gravidez de onze semanas, que foi considerada de alto risco porque ela estava sofrendo de
uma doença grave. Posteriormente foi diagnosticado que o feto era anencefálico, incompatível com a
vida extrauterina, e que se a gravidez progredisse havia uma probabilidade de morte materna.
Devido à situação de risco em que se encontrava Beatriz, a CIDH e a CorteIDH concederam medidas
cautelares e provisionais em seu favor. Beatriz entrou em trabalho de parto e teve que passar por
uma cesárea. O feto anencefálico morreu cinco horas depois.
22 A CIDH apresenta caso de El Salvador perante a Corte IDH sobre a proibição absoluta do aborto.
Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2022/011.asp
interrupção da gravidez, atingiram a máxima severidade no caso e estabeleceu
que a criminalização do aborto, em particular a sua proibição em todas as
circunstâncias e sem exceção, pode encorajar as mulheres a recorrer a abortos
ilegais e inseguros, colocando em risco sua saúde física e mental e até mesmo
sua própria vida. Finalmente, a Comissão concluiu que, dado que o Código
Penal anterior de El Salvador tinha uma disposição que excluía da
responsabilidade criminal os abortos "terapêuticos, eugênicos e éticos", a
adoção do Código Penal atual que proíbe o aborto em todas as
circunstâncias constituiu uma violação da obrigação de abster-se de
adotar medidas regressivas, criando um obstáculo legal a um serviço de
saúde disponível no país sob certas circunstâncias.
Tais precedentes são importantes, pois embora sejam casos ocorridos
em El Salvador, estabelecem estándares para todo sistema Interamericano, do
qual o Brasil faz parte.
D) Do direito à saúde, autonomia e do necessário acesso igualitário aos
serviços de saúde (arts. 6º, caput, e art. 196, caput, CF/88; Lei nº
8080/90)
A saúde é direito de todos, que deve ser garantido de forma universal e
igualitária pelo Estado (artigo 196 CRFB/88) por meio do Sistema Público de
Saúde (artigo 198, II, CRFB/88).
Convém pontuar que a saúde, de acordo com a OMS, é um estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças
ou enfermidades. Existem condições de saúde que são agravadas pela gravidez,
incluindo-se a “angústia psicológica ou o sofrimento mental causado, por
exemplo, por atos sexuais coagidos ou forçados [...]”23. Quando a gestante é
criança ou adolescente, o seu desenvolvimento sadio pode ser comprometido
em decorrência do estupro e da gestação vivenciada.
A Lei Federal nº 8.080/1990, conhecida como a Lei Orgânica do
Sistema Único de Saúde (SUS), regula, em todo o território nacional, as ações e
serviços de saúde. O artigo 2° deste diploma normativo estabelece que a saúde
é um direito fundamental do ser humano e que é um dever do Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, garantindo a
todas as pessoas o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para
a sua promoção, proteção e recuperação. O artigo 7º, por sua vez, prevê as
diretrizes das ações e dos serviços públicos de saúde e dos serviços privados
contratados ou conveniados que integram o SUS, estabelecendo como uma de
suas diretrizes, no seu inciso III, a preservação da autonomia das pessoas na
defesa de sua integridade física e moral.
No que tange ao atendimento em saúde de mulheres e adolescentes em
situação de violência doméstica e sexual, a Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde prevê a necessidade de
23 MONTEIRO, p. 634.
organização de redes integradas de atenção às mulheres, ações de prevenção de
infecções sexualmente transmissíveis e ações preventivas em relação às
violências.
A Lei do Minuto Seguinte (Lei nº 12.845/13) dispõe sobre o
atendimento obrigatório e integral às pessoas em situação de violência sexual, o
qual deve ser oferecido, de modo imediato, em todas as unidades de saúde da
rede do SUS.
O Decreto nº 7958/2013 traz diretrizes para o atendimento de vítimas
de violência sexual pelas(os) profissionais da segurança pública e de saúde,
dentre elas o atendimento humanizado, respeitados os princípios da dignidade
da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade; a disponibilização
de espaço de escuta qualificado e privacidade durante o atendimento; e a
informação prévia à vítima, que deve compreender cada etapa do atendimento e
ter respeitada sua decisão sobre a realização de qualquer procedimento.
No mesmo sentido, a portaria que trata dos direitos e deveres das
usuárias e usuários de saúde (Portaria nº 1820/09) estabelece que toda
pessoa tem direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer
discriminação (art. 4º).
A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do
Ministério da Saúde enfatiza que o atendimento às vítimas de violência sexual
deve observar os princípios fundamentais da bioética, quais sejam, (a) a
autonomia, entendida como o direito da mulher de decidir sobre as questões
relacionadas ao seu corpo e à sua vida; (b) a beneficência, ou a obrigação ética
de se maximizar o benefício e minimizar o dano; (c) a não maleficência, pois a
ação deve sempre causar o menor prejuízo à paciente, reduzindo os efeitos
adversos ou indesejáveis; e (d) a justiça ou imparcialidade da(o) profissional de
saúde, que deve evitar que aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou
outros interfiram na sua relação com a mulher.
Referido documento24 conceitua “atenção humanizada” como
“Promover o acolhimento, a informação, a orientação e o suporte
emocional no atendimento favorece a atenção humanizada por meio da
interação da equipe com a clientela, o que determina as percepções desta
quanto à qualidade da assistência, melhora da relação profissional de
saúde/usuária, aumenta a capacidade de resposta do serviço e o grau de
satisfação das mulheres com o serviço prestado, assim como influência na
decisão pela busca de um futuro atendimento. Nos casos de abortamento
por estupro, o profissional deverá atuar como facilitador do processo de
tomada de decisão, respeitando-a.”
Portanto, é dever do Estado, por meio do SUS, promover o acesso à saúde
de forma universal, integral e igualitária; evitar a revitimização e garantir o mais
24 Disponível em chrome-
extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atenca
o_humanizada_abortamento.pdf - acessado em 13/06/2024
amplo acesso das vítimas de violência sexual aos serviços de interrupção legal
da gestação; e garantir o respeito à autonomia da pessoa atendida, o que
engloba a liberdade da escolha de medicamentos e terapêuticas disponíveis.
- DA CONCLUSÃO
Contrariando o cenário fático e jurídico acima demonstrado, a Câmara
Federal aprovou no dia 12 de junho do ano em curso, o regime de urgência para
o Projeto de Lei 1.904/2024, o que permite que tal projeto seja votado
diretamente no Plenário, sem ser submetido antes às respectivas comissões
temáticas da Câmara, bem como sem possibilitar a participação da sociedade
civil e de Instituições Públicas nos debates e discussões acerca desta temática.
Desta forma, diante de todo o exposto nesta Nota Técnica, bem como diante da
inconvencionalidade, inconstitucionalidade e ilegalidade do Projeto de Lei
- 904/2024, referido projeto deve ser arquivado, haja vista que a criminalização
pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e
meninas, rompendo com os valores democráticos preconizados pela
Constituição da República de 1988 e pelos Tratados internacionais de Direitos
Humanos ratificados pelo Estado brasileiro, em flagrante retrocesso à todos os
direitos conquistados por mulheres e meninas ao longo da história
ACESSE O DOCUMENTO Nota_Técnica_PL_1904.pdf.