Por Gustavo Pinheiro, defensor público, coordenador do Nucrim da Defensoria Pública de MS
O estado de Mato Grosso do Sul, segundo estimativas do IBGE, conta com população de cerca de 2.839.188 habitantes[1]. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2020/2021[2] mostrou que 43,0% destes indivíduos se autodeclararam como brancos, 49,6% como pardos, e 6,1% como pretos, totalizando 55,7% da população de cor/raça negra (pretos e pardos).
Sabe-se que a questão racial é uma importante variável a ser considerada quando se trata do sistema prisional brasileiro.
Por isso, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul consolidou recentemente as estatísticas extraídas dos últimos 20 meses referentes às audiências de custódia de Campo Grande, abrangendo o período de março de 2021 (data do início dos levantamentos estatísticos) a outubro de 2022.
Alguns números chamaram a atenção e merecem reflexão, valendo registrar que as audiências de custódia fornecem um relevante panorama da porta de entrada no sistema prisional. Em outras palavras, é um importante “termômetro” de encarceramento.
As estatísticas revelam que 4.878 pessoas passaram pelo ambiente forense da audiência de custódia, em Campo Grande, neste período. Destas pessoas, 3.486 se autodeclararam negras (634 se declararam pretas e 2.852 se declaram pardas), o que representa 71,5% das pessoas que foram presas nesses últimos 20 meses.
Diante disso, nota-se, portanto, uma sensível discrepância entre a proporção de negros na população de presos (71,5%) e a proporção de negros na população em geral (55,7%).
À guisa de ilustração, pelas estatísticas da PNAD na amostra de Mato Grosso do Sul, temos que, na população em geral, a cada 100 pessoas, cerca de 56 são negras. No ambiente prisional das audiências de custódia, a cada 100 pessoas presas, cerca de 71 são negras
A estatística de elevada proporção de pessoas negras encarceradas vem atrelada a uma determinante social importante, que é a maior vulnerabilidade das pessoas negras à violência no Brasil, afirmação feita pela especialista e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno[3].
Segundo a especialista, o índice de mortalidade entre pessoas brancas e amarelas é de 11 pessoas a cada 100 mil indivíduos, enquanto entre pessoas negras o índice sobe para 29 pessoas a cada 100 mil. Para a estudiosa, esses números refletem “acúmulo histórico de mais de 300 anos de escravidão e da ausência de políticas públicas que relegaram a população negra a um lugar em que ela concentra uma série de indicadores dos piores, como índices de evasão escolar, piores indicadores de inserção formal no mercado de trabalho e as mulheres negras com o índice de salário mais baixo no mercado de trabalho”.
Acrescido a esta realidade é preciso considerar a questão do racismo estrutural, presente na sociedade de maneira geral e não restrita ao contexto do Brasil. Uma fala recente do atual presidente dos Estados Unidos, ao abordar a questão das drogas nos Estados Unidos, deixa evidente esse panorama[4]: “Antecedentes criminais por porte de maconha impuseram barreiras desnecessárias ao emprego, moradia e oportunidades educacionais. E, apesar de pessoas brancas, pretas e pardas usarem maconha em taxas semelhantes, pessoas negras e pardas foram presas, processadas e condenadas em taxas desproporcionais".
Dada a complexidade e multidisciplinaridade do tema, não é possível chegarmos a uma conclusão definitiva sobre a causa (ou as causas) da maior taxa de encarceramento de negros em relação à população branca. Todavia, algumas hipóteses podem ser lançadas, sem prejuízo de outras que por ventura possam existir.
Uma primeira hipótese remonta ao tratamento histórico dado pelo aparato estatal de repressão organizada em relação à população negra. Conforme o Ministro Rogerio Schietti, em voto proferido no Superior Tribunal de Justiça[5]: “Infelizmente, ter pele preta ou parda, no Brasil, é estar permanentemente sob suspeita”.
O Ministro trouxe importantes reflexões e contextualizações históricas, como, por exemplo:
A primeira força policial ostensiva de que se tem notícia na história brasileira – fundada um ano depois da chegada da família real portuguesa e da criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil – foi a Guarda Real de Polícia, cuja prioridade, de acordo com Rubens Casara, era o “ controle da circulação da massa escrava”
(...)
Como decorrência da ainda latente mentalidade escravista, cujos efeitos perduram até os dias de hoje, o controle sobre os corpos negros no espaço público se acentua por meio da repressão criminal, a qual se voltava não apenas contra condutas concretas e danosas, mas também contra condições pessoais vistas, por si sós, como perigosas e indesejáveis – porém muitas vezes inescapáveis aos ex-cativos, que, uma vez postos em liberdade pela Lei Áurea, haviam sido abandonados à própria sorte –, tais como a vadiagem e a mendicância.
(...)
Passado mais de um século desde o fim da escravatura, o cenário acima exposto ganhou novos contornos; substancialmente, contudo, pouco se alterou.
(...)
“Os jovens, os negros e as pessoas de renda e escolaridade mais baixas sofrem revista em proporções bem maiores do que os outros segmentos considerados. Ao que tudo indica, a pessoa não só suspeita menos de pessoas brancas, mais velhas e de classe média que transitam pelas ruas da cidade, como tem maior ‘pudor’ em revistá-las” (...) (RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 39 e 113)
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública[6]:
A implementação de legislações antidiscriminatórias, tanto no Brasil quanto nos EUA, fez com que emergissem novas modalidades de expressão do racismo. É evidente que a letra das leis antidiscriminatórias não mudou a realidade do racismo, mas fez com que fosse necessário exprimi-lo de forma mais sofisticada, sutil e velada
(...)
No caso das polícias, a raça é recodificada pelo tirocínio enquanto conjunto de símbolos e comportamentos que, embora diretamente referentes à negritude e ao universo popular periférico, não falam diretamente em raça: não se aborda o negro pela cor da pele ou pelos traços negroides que carrega, mas pela forma como anda, veste, fala; por ter “atitude suspeita”
(...)
Se é necessário avançar urgentemente com o debate acerca da seletividade do emprego do uso da força pelas polícias brasileiras, excessivamente focada nos corpos negros, é necessário também reconhecer que existe uma demanda social por incriminação e eliminação da negritude brasileira historicamente consolidada no próprio projeto de nação do Brasil, ou seja: não é um problema exclusivamente da polícia, mas um problema social amplo o suficiente para que de sua solução dependa a própria possibilidade de nos considerarmos uma democracia.
Tem-se, portanto, que dentro da primeira hipótese, o quadro atual seria decorrente da perpetuação de um sistema estatal, que, em sua origem, era voltado a reprimir condutas de corpos negros, ao mesmo tempo em que haveria uma maior tolerância a condutas desviadas praticadas pela população branca.
Uma segunda hipótese possível é que o maior encarceramento da população negra se deva não em razão de sua cor ou raça propriamente dita, mas sim em razão de sua condição socioeconômica, mormente porque há maior proporção de negros nas camadas sociais de menor remuneração e/ou escolaridade.
Conforme estudo anteriormente publicado[7] pela Defensoria Pública, já havíamos constado que “79% das pessoas custodiadas não tinham concluído a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio). Ainda mais trágico foi verificar que cerca de 50% das pessoas presas não tinham sequer o ensino fundamental completo (46,33%) ou simplesmente não haviam estudado (2,80%). Isso reflete uma realidade de baixíssima escolaridade entre os custodiados”.
No mesmo estudo, foi detectado que “quando o recorte estatístico passa a ser a renda média do indivíduo, temos que 20% estavam desempregados, 21% tinham renda menor do que 1 salário mínimo, e 44% ganhavam entre 1 a 2 salários mínimos. Apenas 11% tinham renda superior a 2 salários mínimos, e os demais 4% não informaram a renda. Com isso, temos que 85 % dos custodiados tinha renda igual ou inferior a 2 salários mínimos”.
Destaca-se que a diferença salarial está estagnada há uma década, onde trabalhadores pretos ganham 40,2% menos do que brancos, por hora trabalhada. No caso dos pardos, o valor é de 38,4% menor que o recebido pelos brancos[8].
Registre-se, ainda, o fato de que historicamente a população negra se encontra em maior proporção abaixo das linhas de pobreza, e reside em domicílios com piores condições de moradia e com menos acesso a bens e serviços que a população em geral[9].
Nota-se, portanto, que o encarceramento de pobres e de pouco estudo é muito mais prevalente. Em síntese, prende-se mais pessoas pobres, sendo certo que muitos dos pobres são negros.
Ambas as hipóteses aventadas são importantes determinantes sociais e inevitavelmente estão interligadas. Não se descartam outras hipóteses que possam explicar o fenômeno, mas sua compreensão deve perpassar também a ação para reversão deste quadro que se perpetua em nossa sociedade desde sempre.
Esperamos que a data de 20 de novembro, que marca o dia da consciência negra, em um futuro próximo, mais do que um dia de luta, seja também lembrada como uma data de celebração.
Até lá, a música[10] escrita por Marcelo Yuka nos soa como um importante alerta: “(..) Que em qualquer dura / o tempo passa mais lento pro negão /
Quem segurava com força a chibata agora usa farda /
Engatilha a macaca / Escolhe sempre o primeiro negro pra passar /
Escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista /
Pra passar na revista / Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (...)”
Até que essa situação fique no passado, no dia da consciência negra, ao menos no aspecto carcerário, não temos o que comemorar.
[1] https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ms.html
[2] https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6408
[3] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/populacao-negra-esta-muito-mais-vulneravel-a-violencia-diz-diretora-do-fbsp/
[4] https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/10/biden-perdoa-milhares-de-pessoas-condenadas-por-posse-de-maconha-sob-lei-federal.ghtml
[5]https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202104036090&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea
[6] Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/05-anuario-2022-letalidade-policial-cai-mas-mortalidade-de-negros-se-acentua-em-2021.pdf. Acesso em 17/11/2022.
[7] https://www.defensoria.ms.def.br/imprensa/noticias/5435-audiencias-de-custodia-analise-da-defensoria-aponta-que-maioria-dos-custodiados-nao-possuem-educacao-basica
[8] Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/15/trabalhadores-pretos-ganham-402percent-menos-do-que-brancos-por-hora-trabalhada.ghtml. Acesso em 17/11/2022.
[9] Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em 17/11/2022.
[10] Música “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, de O Rappa.
Defensor público Gustavo Pinheiro, coordenador do Núcleo Institucional Criminal, da Defensoria Pública de MS.