Autora: Carla Gavilan Carvalho
A edição do jornal Correio do Estado desta sexta-feira (13) traz como destaque a publicação de um artigo do defensor público José Gonçalves de Farias, titular 11ª DPE Criminal de Campo Grande.
Com o título “Lei Áurea: o marco zero”, o texto do defensor traz importantes reflexões sobre os impactos históricos do período de escravidão no Brasil e foi produzido para a Semana da Consciência Negra realizada pela Defensoria Pública de MS.
Confira, abaixo, o artigo na íntegra e, aqui, a publicação no Correio do Estado.
Defensor público José Gonçalves Farias.
Lei Áurea: o marco zero
Autor: defensor público José Gonçalves de Farias, titular 11ª DPE Criminal de Campo Grande.
No coração da cidade de São Paulo, a avenida Rebouças, que interliga a avenida Paulista à Marginal Pinheiros, é considerada um importante centro financeiro e comercial, rodeada suntuosos prédios de arquitetura invejável, atendendo ao refinado gosto da elite paulistana.
O visitante poderá não saber que o homenageado dessa via foi André Rebouças, que, juntamente com seu irmão Antônio Rebouças, e os ilustres Luiz Gama e José do Patrocínio, formaram um grupo aguerrido de defensores pela libertação dos escravos.
E olha que já se passaram 132 anos do dia da abolição, do começo, do start, da vida em liberdade para o negro, do marco zero, deflagrado no dia 13 de maio de 1888, depois das Leis Eusébio de Queiroz, Ventre Livre, Sexagenários e Lei Áurea.
Relatos confiáveis dão conta de que, passada a euforia da vitória, comemorada exaustivamente em todo canto do País, pouco a pouco a poeira foi baixando, a ficha foi caindo para o negro, porque perceberam, então, que a tão sonhada liberdade trazia embutida a dura realidade da falta de teto, dinheiro, comida e trabalho.
Era o início da concorrência mais desleal que já se viu na história, com o ingresso do negro no mercado de trabalho, disputando vagas com aqueles que sempre foram livres e acumularam fazendas, sítios, chácaras ou comércio, muitas vezes, com sangue, suor e lágrimas dos negros escravizados.
Segundo estatísticas oficiais, desembarcaram por aqui cerca de quatro milhões de escravos e, com a liberdade alcançada, as futuras gerações dos negros estavam em grande desvantagem.
Colocados na balança o tempo de escravidão, mais o período de liberdade, o ponteiro ainda não está equilibrado, e ora que nem mesmo as cotas raciais conseguiram compensar a dívida impagável do Estado Brasileiro para com os negros.
Ao que parece, o racismo está dentro de cada um de nós, na medida em que temos dificuldade de entender e enxergar a essência dessa discriminação, que se revela sutil e disfarçada em cada olhar pela rua, no comércio, nos shoppings, e toda vez que alguém ajeita a bolsa, esconde o celular ou muda de calçada, sentindo-se intuitivamente ameaçado pela presença de um negro.
Em um estabelecimento comercial de alto padrão, se observado atentamente, perceberá a discreta e silenciosa movimentação dos seguranças, quando um negro adentra ao recinto, em que os seguranças, por meio de sinais visuais ou falas codificadas, alertam aos demais.
É um julgamento prévio, cruel e sem o direito de defesa, partindo da premissa de que a cor da pele define o caráter da pessoa.
O curioso é que, não raras vezes, dentro da equipe de segurança contém pessoas negras! É negro desconfiando de negro!
O tempo passou desde a abolição, e a inevitável conclusão é de que a luta por uma efetiva igualdade ainda não terminou, e nem precisa de estatística para perceber a desproporção da população negra nos bancos escolares, nos cargos públicos e políticos, nas telenovelas, nos altos escalões de trabalho das grandes corporações etc.
Quando se alcançar essa igualdade, como determina a Lei Maior (Artigo 5º), poder-se-á comemorar de fato, a justa homenagem feita a André Rebouças.