Diretora da ESDP, Camila Maués dos Santos Flausino, na abertura do evento.
“O sistema capitalista impõe dois polos: os incluídos e excluídos. Entre os últimos, a população em situação de rua sofre uma tripla exclusão: social, econômica e de acesso a direitos”, afirmou a diretora da Escola Superior da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (ESDP/MS), Camila Maués dos Santos Flausino, na abertura do “Diálogos Interdisciplinares: População em Situação de Rua”, evento realizado na sexta-feira (16) pela Instituição em Campo Grande.
Artêmio Miguel Vernoza, coordenador do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) explicou, em sua fala, a definição do conceito deste grupo social de acordo com a polícia nacional.
Artêmio Miguel Vernoza, diretor do Centro POP.
“Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
Dados do serviço de abordagem social (Seas) apresentados pelo assistente social apontam que no mês de julho deste ano foram feitas 552 abordagens nas ruas de Campo Grande. Sendo que destes chamados, foram localizadas 430 pessoas, sendo apenas 40 mulheres e uma grande maioria de pessoas pardas ou negras. Quase a metade destes, 210 pessoas, recusou o atendimento.
A região do centro de Campo Grande foi o local com a maior concentração de pessoas em situação de rua. No mês passado, havia 241 pessoas no local, mais da metade do total dos abordados.
Mais de cem pessoas participaram do evento.
Adultos eram o maior número, mas foram encontrados duas crianças de até 12 anos. Nos números também havia a origem das pessoas: 377 campo-grandenses, 19 migrantes e 34 imigrantes. Destes estrangeiros, 22 eram da Venezuela.
Dos 144 atendimentos realizados, 79 foram encaminhados para o Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante e População de Rua, um dos centros de acolhimento de alta complexidade de Campo Grande, além de 15 reconduções familiares.
Segundo Artêmio esta atuação da assistência social não é na perspectiva higienista. “Nós não vamos ‘limpar’ a cidade. É inviolável o direito a liberdade”.
Visão antropológica
De acordo com Guilherme Rodrigues Passamani, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal de Mato Grosso Sul, a população em situação de rua é inviabilizada por ser inconveniente para a sociedade ‘normalizada’.
Segundo Passamani, na antropologia urbana, não é mais necessário viajar grandes distância para dialogar com o outro. “As cidades, os grandes centros urbanos resignificaram o processo de alteridade. Esse outro, que antes era distante, marcado pela cultura, por uma alteridade radical, frequenta a cidade, está do outro lado da esquina”, afirmou.
O professor de antropologia da UFMS, Guilherme Rodrigues Passamani, realiza pesquisa sobre o centro de Campo Grande.
Esse olhar para o outro é particular no caso de Campo Grande, capital ainda muito associada ao mundo rural “onde vigora uma identidade, um paradigma patriarcal e escravocrata”, de acordo com o palestrante. “Isso explica um pouco essa aversão aos pobres e diferentes, a partir de uma lógica que domina e que se pretende total”.
Neste processo de exclusão do diferente, o professor abordou o projeto de ‘revitalização’ do centro de Campo Grande, que foi realizado em parte em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Para ele, a modernização da cidade pode afastar as pessoas que não se sentem parte do espaço. “A ideia é que pelo ‘enobrecimento’ do lugar, as pessoas pobres se sintam constrangidas de frequentar. E neste sentido devemos nos perguntar: com quem essa cidade passa a se comunicar? Estamos vendo que com essas 500 e poucas pessoas que estão nas ruas todos os dias a cidade não se comunica”.
Para o professor, olhamos a cidade por uma lógica dos iguais, dos incluídos, ‘dos cidadãos de bem’.
"Estamos preocupados com o que na cidade? Às vezes as pessoas se preocupam com a facilidade do ir e vir, com ruas largas, com as avenidas, com as árvores que fazem de Campo Grande uma cidade tão arborizada, mas me parece que esse espirito que cobre a cidade só ganha sentido efetivamente quando cuidamos bem das pessoas e cuidar bem das pessoas é, antes de mais nada, escutá-las. Nós, que lidamos com essas pessoas, indo até elas com uma receita do que é um bom habitar, do que é uma boa vida na cidade, já estamos nos furtando de compreender um pouco da história destes sujeitos no espaço urbano”.
O coordenador do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), Mateus Augusto Sutana e Silva,
falou sobre as visitas que já realizou aos centros de atendimento à população de rua.
A experiência da Defensoria na Rua
De acordo com Daniele de Souza Osório, defensora pública da União que trabalha na regional de direitos humanos da DPU/MS, o atendimento à população em situação de rua é um dos mais complexos da Defensoria Pública. “A pessoa que tem seus laços rompidos tem muita dificuldade em buscar o atendimento”, afirmou.
A moradia é um direito constitucional e sua falta impõe uma série de dificuldades. Daniele diz que este é um direito estruturante, pois sem um endereço a pessoa não consegue emprego formal, tem dificuldade no acesso à saúde publica, à educação, não consegue se cadastrar em muitos benefícios sociais.
Daniele de Souza Osório, defensora pública da União, discorreu sobre sua experiência da DPU de São Paulo.
“No caso das mulheres, a moradia, além de ser barreira contra as agressões ao corpo, é garantia ao exercício da maternidade. A gestante em situação de rua, muitas vezes sob o argumento de proteção à criança, tem retirado seu direito a maternidade. Isso é uma violência institucional”, pontuou.
Segundo a defensora pública, viver na rua é um direito, mas que só pode ser considerado quando a pessoa tem a possibilidade de escolher. “No Brasil, nós não damos esse direito de escolha entre a casa ou a rua”.
Afirmou também a importância de trazer para a discussão as pessoas que estão neste contexto. “Trazer pra dentro das nossas discussões as pessoas que serão atendidas pelas nossas políticas públicas deve ser a nossa principal preocupação. O nosso grupo de trabalho prega que a defensora ou o defensor vá para rua, porque estas pessoas não vão chegar até nós, pois seus históricos de vida são de violação. Ela sofreu todo tipo de violência estatal ate chegar àquele lugar”.
Contou sua experiência em São Paulo. Chegou na capital paulista em 2010 e com outros colegas percebeu que apesar de existirem 15 mil pessoas em situação de rua na cidade, elas não buscavam a Defensoria Pública.
“Era uma unidade que ficava na Avenida Paulista e, como foi dito, determinadas ruas essa população não frequenta, seja por não se sentir parte ou pela repressão estatal em algumas áreas de São Paulo. Acabamos descobrindo que eles iam duas vezes por semana em um local em que padres franciscanos serviam um chá da tarde. Chamamos a DPE e começamos a atender semanalmente lá. No início houve muita dificuldade. No primeiro ano foram apenas 70 ações. Muitas delas a respeito de saques de FGTS. Depois, elas começaram a comentar umas com as outras e no outro ano foram 2 mil ações”.
São muitas as possibilidades de atuação jurídica no caso desta população: reestabelecimentos de benefícios previdenciários, assistência à saúde, documentos perdidos e regularização migratória, são algumas das demandas que a defensora atende.
E para descobrir é preciso ouvir. “A pessoa em situação de rua não é como os outros assistidos, que chegam sabendo o que precisam. Com elas, precisamos conversar, fazer uma escuta ativa. A pessoa em situação de rua no Brasil tem privada, além da moradia, o acesso ao serviço público. E é aí que tá a irregularidade de toda a situação”, afirmou.
Vagner Fabricio Vieira Flausino, defensor público de MS, participando do evento.
Estela Márcia Rondina Scandola, professora e pesquisadora, falou sobre os atendimentos que já realizou na rua, especialmente os voltados às mulheres.
Texto: Lucas Pellicioni