Cerca de 30 mulheres da comunidade Tia Eva participaram do encontro.
No Dia Mundial da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, comemorado em 25 de julho, o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) esteve na comunidade quilombola Tia Eva, em Campo Grande, para dialogar com as mulheres sobre a Lei Maria da Penha, a violência de gênero e o racismo. O evento foi o primeiro de uma agenda em alusão ao Agosto Lilás, mês que promove a conscientização sobre a violência de gênero.
No local, as lideranças da comunidade e as moradoras receberam a coordenadora do Nudem, defensora pública Thaís Dominato Silva Teixeira e a psicóloga do Núcleo, Keila de Oliveira Antônio.
A defensora Thaís Dominato abordou as principais questões sobre a Lei Maria da Penha.
“Na realidade das mulheres negras a discriminação de gênero e a discriminação racial operam juntas. É a chamada interseccionalidade, fazendo com que a mesma pessoa seja atravessada por mais de uma vulnerabilidade e sofra maior limitação nas suas chances de sucesso. Resumindo: se as mulheres, em geral, enfrentam tantas dificuldades e desafios, isso tudo é potencializado em relação às mulheres negras”, explicou a coordenadora do Nudem.
Números que ferem
Os dados corroboram a fala da defensora. De acordo com o Atlas da Violência de 2018, a taxa de feminicídios contra as mulheres não negras é de 3,1 por 100 mil, enquanto a das mulheres negras é de 5,3 por cem mil, uma diferença de mais de 71%.
Na violência obstétrica, a defensora pública pontou que elas também são as que mais sofrem. Das mortes maternas na hora do parto, 60% das vítimas são mulheres negras.
“No Nudem trabalhamos com violência obstétrica e temos ouvido muitos relatos sobre o quanto o racismo existe na hora do parto. As mulheres negras são as que menos recebem anestesia sob o fundamento racista de que elas são mais fortes e resistentes”, contou.
Quanto às comunidades quilombolas, a pesquisa da Prefeitura “Mapa da Violência Contra a Mulher em Campo Grande” apontou que 54% das mulheres dos quilombos da Capital sofrem ou já sofreram violência doméstica.
Alicerces da Sociedade
Sandra Martins, do Gmune, homenageou a quilombola Tereza de Benguela, em sua fala.
Sandra Mara Martins Santos, assistente social e membro do Grupo de Mulheres Negras em Ação da Comunidade Tia Eva (Gmune), lembrou que o dia 25 de julho também é uma homenagem a Tereza de Benguela, mulher negra e quilombola de Mato Grosso, que foi a dirigente política à frente do Quilombo de Quariterê, no século XVIII, e que foi presa e morta pelo Estado. “A mulher negra é o alicerce de toda a sociedade brasileira. Se nós nos movemos, a sociedade se move”, afirmou Sandra.
Sem poder deixar de mencionar, Vânia Lucia Baptista Duarte, professora de História e também membro do Gmune, homenageou Tia Eva, fundadora da comunidade e cofundadora de Campo Grande. “A Tia Eva, foi uma mulher negra, guerreira, ex-escrava, que saiu do interior de Goiás com três filhas, sem marido, em uma comitiva de boi e construiu a comunidade que moramos. É uma mulher que deve ser exaltada todos os dias”.
Participantes participam ativamente da roda de conversa.
A Lei Maria da Penha
“Informação é poder. Quanto mais a gente sabe, menos prejuízos temos”, começou a defensora Thais Dominato ao explicar a Lei Maria da Penha, marco legal na proteção das mulheres vítimas de violência de gênero e que no dia 7 de agosto comemora 13 anos desde que foi sancionada.
“Todas as violências contra a mulher são manifestações de poder e de desigualdade. Quando nascemos, já temos papéis determinados. O homem tem papel de força, poder, a criação os faz prontos para os espaços públicos; enquanto à mulher, ficam relegados os papéis domésticos e de cuidados, levando-a a ocupar os espaços fechados do lar e da família. A gente vai crescendo e reproduzindo esse padrão ao longo das nossas vidas”, disse.
De acordo com a defensora, a experiência na defesa da mulher a fez perceber que a agressão geralmente acontece justamente quando a mulher alega não querer mais estar inserida neste papel. “Quando ela veste a roupa que quer, resolve trabalhar fora ou estudar é que a violência começa dentro de casa”, explica.
No ano passado, Mato Grosso do Sul teve 36 feminicídios. Neste ano, até junho, 21 foram assassinadas em razão do gênero. Quase 60% do total de 2018.
“É nesta perspectiva que surge a Lei Maria da Penha, como uma política afirmativa para tentar reduzir a violência contra as mulheres e garantir a igualdade entre os gêneros”, explica Thaís Dominato.
Algumas questões que foram esclarecidas sobre a Lei Maria da Penha:
- A Lei foi uma condenação da comunidade internacional à omissão do Brasil em legislar o tema, após pressão de Maria da Penha, que sofreu duas tentativas de feminicídio do ex-marido.
- A mulher não pode desistir da denúncia no caso de agressão física. Nos casos de menor potencial agressivo, como ameaça, é possível, desde que não tenha se iniciado o processo judicial.
- Somente mulheres, incluindo as trans, podem ser vítimas, mas os agressores não se restringem aos homens. Mulheres que cometem violência também se enquadram, como as parceiras em relações homoafetivas.
- Uma pesquisa apontou a Lei Maria da Penha como a mais conhecida do país, mas 80% das mulheres alegam não conhecer seu conteúdo.
- A medida protetiva é um importante instrumento de proteção para a mulher e seu descumprimento pode levar à prisão.
- Relação sexual não é obrigação do matrimônio, a falta do consentimento é estupro.
- A partir deste ano, o mero registro da nudez ou ato sexual sem o consentimento da mulher se tornou crime.
- A violência não se resume a agressões físicas. Também existem a psicológica, sexual, patrimonial e moral.
É preciso mudar o paradigma
“Aprender a lavar roupa, cuidar da casa, não é demérito, é autonomia, tanto para meninas quanto para meninos. Qualquer pessoa precisa aprender a se virar. Temos que ressignificar o nosso cotidiano, porque as mulheres têm adoecido por acúmulo de funções.”, disse a psicóloga do Nudem, quando abordou a necessidade de uma educação com igualdade.
Keila Antônio, psicóloga do Nudem, explicou sobre o ciclo da violência.
De acordo com ela, a educação machista, que promove a agressividade entre os homens, impacta na violência contra as mulheres no futuro. E os estudos mostram que as mulheres demoram cerca de 10 anos para conseguir se livrar do ciclo de violência.
Futuros encontros
Ao fim do encontro, Vânia disse que muitas mulheres se apoderaram de informações que não sabiam. Foi tão produtivo, que já está articulando um próximo. “Queremos trazer a questão da violência obstétrica. Muitas mulheres grávidas não sabem que algumas atitudes que sofrem são crimes. São as mulheres que sofrem com a desigualdade, que não concluíram o ensino médio, superior”, afirmou.
Vânia Baptista falou da importância das Instituições ouvirem as comunidades.
“Quando a gente fala da violência contra a mulher negra, é de gênero, é de classe, é racial. É um processo de invisibilidade. Pois em vários debates, quando vai se falar da mulher, não se faz o recorte da mulher negra, da indígena, da não branca, e esse recorte é necessário, pois infelizmente, por todos os dados estatísticos da violência doméstica, a incidência é maior na mulher negra”.
A professora pontuou ainda que o encontro funcionou tão bem, pois o Nudem convidou o Gmune para perguntar qual era a melhor forma de discutir o tema com a comunidade quilombola. “Nos ouvir foi fundamental”.
Parceiros
Além do Grupo de Mulheres Negras em Ação da Comunidade Tia Eva (Gmune) foi parceira do evento a Associação dos Descendentes De Tia Eva. As mulheres da comunidade também puderam compartilhar experiências de empoderamento, racismo e violências sofridas no cotidiano.
Dona Fátima e sua filha falaram de racismo e empoderamento.
Texto e fotos: Lucas Pellicioni