Após inúmeras tentativas administrativas, a Defensoria Pública ajuizou, na semana passada, uma Ação Civil Pública com pedido de concessão de tutela provisória de urgência para impedir o fechamento da ala de psiquiatria da Santa Casa.
O assunto teve grande repercussão na imprensa desde o anúncio da direção do Hospital no início deste mês. A informação é de que o serviço continuaria em funcionamento até o dia 30.
Segundo a coordenadora do NAE, defensora pública Eni Maria Sezerino Diniz, nos dias 4 e 5, a Defensoria recebeu inúmeros chamados de familiares de pacientes psiquiátricos da Santa Casa com relatos de que se encontravam ameaçados de serem transferidos para outra unidade hospitalar.
Na quarta-feira (13), foi publicado no diário oficial do Estado um procedimento de apuração preliminar (PAP) instaurado pelo Núcleo de Ações Estratégicas (NAE) da Defensoria Pública para investigar quais seriam as lesões aos direitos dos pacientes internados e os prejuízos que poderiam sofrer com o imediato fechamento do setor e desativação dos leitos.
Diversas diligências foram realizadas no curso do PAP, como expedição de ofícios, levantamento de dados, participação em reuniões e entrevistas com pacientes e familiares.
Compromisso não cumprido
Na segunda-feira (11), a Defensoria Pública recebeu pedido de ajuda dos familiares dos pacientes, que relataram ter obtido a informação de que os internados seriam transferidos para o Hospital Nosso Lar. Informaram ainda que a determinação da direção era de que a transferência ocorreria de forma imediata no correr da semana e que o paciente ou familiar que recusasse teria a alta médica decretada a sua revelia.
Em busca de esclarecimentos, a defensora pública recebeu como resposta da Santa Casa que a manutenção do setor de psiquiatria gera prejuízo para a unidade, que a taxa de internação é sempre abaixo de sua capacidade, que o local onde está alocado o setor é grande e confortável e seria melhor utilizado por outras especialidades médicas.
Ressaltaram que o fechamento dos leitos e encerramento das atividades ambulatoriais não geraria qualquer impacto significativo à população usuária do SUS e que a decisão de fechamento da unidade teria sido recomendada por uma empresa de consultoria.
Em reunião com o corpo diretor do Hospital, no dia 11, a defensora pública informou “que estava atuando em defesa do direito dos pacientes do SUS em terem a continuidade de seu tratamento da forma digna e humana, sem serem tratados como meros objetos de mercancia e que a transferência compulsória acarretaria grave lesão”.
Após o encontro, a Defensoria Pública recebeu um ofício em que a Santa Casa assumiu o compromisso formal de que os pacientes não seriam transferidos e que até que fossem encerradas as negociações com o Município, os leitos permaneceriam em funcionamento.
Acontece que, no dia seguinte, o corpo clínico e a Defensoria Pública foram surpreendidos ao tomar conhecimento de uma reunião que aconteceu no Ministério Público, na qual compareceu a diretoria da Santa Casa, que afirmou que de fato iria fechar a psiquiatria, pois o serviço geraria prejuízos e os pacientes seriam encaminhados para o nosso lar.
“Ao serem transferidos para outra unidade psiquiátrica, os pacientes sofrerão ruptura com o tratamento a que vinham sendo submetidos segundo o critério do médico que os assistia e que já tinha conhecimento de seu caso e de suas peculiaridades. É como se o tratamento tivesse que iniciar-se do zero”, explicou a defensora.
Dados incoerentes
A informação de que a taxa de internação da psiquiatria está sempre abaixo de sua capacidade não condiz com os dados apresentados pelo SUS.
Após relatos e denúncias de familiares, a Defensoria Pública verificou que pacientes psiquiátricos estão sendo mantidos por vários dias em UPAs e CRSs sem condições de tratamento e acomodação adequados.
Segundo o Município, no dia 13/09, havia 58 pessoas aguardando internação psiquiátrica. Em muitos casos, como foi verificado pela Defensoria, elas são mantidas amarradas nas macas. Na UPA da Moreninha havia um paciente nestas condições há mais de 15 dias.
“Os pacientes em questão não estão internados em hospital por absoluta falta de vaga. E a Santa Casa, embora afirme que sua lotação não ultrapassa 85%, tem negado sistematicamente o fornecimento de vaga por alegar falta de leito disponível. Tal situação leva a crer na sonegação de vagas exatamente para artificialmente se induzir notícia de baixa ocupação, com vistas ao estrangulamento do serviço e extinção dos referidos leitos”, afirmou a coordenadora do NAE, Eni Maria Sezerino Diniz.
Além de todos estes prejuízos, o fechamento da psiquiatria da Santa Casa iria acabar com o atendimento a crianças e adolescentes, pois o Hospital é o único em Campo Grande que realiza consultas psiquiátricas para esta parcela da sociedade.
Há ainda o dano ao atendimento ambulatorial. Por mês, são realizadas em torno de 370 consultas médicas na Santa Casa. “A interrupção do serviço causará brutal impacto aos usuários do SUS, pois, segundo informação do requerido Município de Campo Grande, mais de sete mil pessoas aguardam vaga para a realização de consulta psiquiátrica”, consta o texto da ACP.
Referência Nacional
O serviço de psiquiatria da Santa Casa foi instituído no ano de 1967 e se tornou uma unidade referência no país pela agilidade e eficácia. Foi o primeiro programa de residência em psiquiatria do Centro Oeste há mais de 40 anos e tornou-se também um centro também de formação e treinamento para psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais.
No ano passado, o Serviço de Psiquiatria da Santa Casa foi considerado pela Associação Brasileira de Psiquiatria como um dos três melhores do Brasil.
Segundo a defensora pública, com o fechamento do setor de psiquiatria, ‘os residentes e os especializandos ficarão sem poder desempenhar as atividades para as quais foram selecionados mediante certame público extremamente concorrido, o que por si só já demanda providência judicial acautelatória e eventualmente indenizatória’.
Setembro Amarelo
O anúncio da Santa Casa foi feito no mês em que são realizadas diversas ações para impedir e conscientizar sobre o suicídio. Atualmente, Campo Grande é considerada uma das cidades com maior taxa de suicídios entre jovens de 15 a 29 anos.
Dentre os anos de 2010 a 2015 foram notificados 4.019 tentativas e destes 280 vieram a óbito. Somente no primeiro semestre do ano de 2016 foram registradas 360 tentativas. Entre todos os Estados, Mato Grosso do Sul tem a segunda maior taxa de suicídio entre jovens.
A Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria do Estado foi ajuizada no sentido de impedir que estes alarmantes dados aumentem vertiginosamente. Para a defensora pública, o fechamento da ala da Santa Casa acarretará em grande prejuízo para toda a comunidade do Estado de Mato Grosso do Sul, que sofrerá com a diminuição dos leitos psiquiátricos e drástica redução de consultas ambulatoriais, ficando a população à mercê de tão devastadores índices.
“Os portadores de transtornos mentais sempre foram relegados a segundo plano e tratados através da cassação de seus direitos civis, em um conceito estigmatizado que incorporou a doença mental como sinônimo de loucura, periculosidade e incurabilidade. Tal conduta acaba por despir o doente de sua personalidade e o marginaliza a ponto de ser considerado um não cidadão”, concluiu.
Por Lucas Pellicioni